sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

MAREMOTO





O AMOR SE EMBRIAGOU NA PRAIA
E ROLOU GROGUE NA AREIA.

DEPOIS, O MAR ENTROU DE RESSACA.

                                                                                  CHICO DE ASSIS
                                                                                           




quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

ODE AOS 60 ANOS

                                                         










                                                   
                                                                                                       Chico de Assis


Chegar aos 60 anos
é ouvir repicar os sinos
de tempos ainda meninos
em auroras ancestrais.

É ver o mundo e de frente
com a rapidez de um grito
divisar no infinito
o que ficou para trás.

É crer no que nunca dizem
é ser sem ser sem raízes
sem amor sem dor
sem limites.



quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

CANUDOS DESPEDAÇADO



                                                       Chico de Assis

Esse chão
onde Canudos ceifou
a semente messiânica
da liberdade plantada
em transe guerreiro
da angústia coletiva
dos homens do Conselheiro.

Chão de um povo
em guerra secular
pelos frutos da terra
em que se plantando
tudo dá.

Fascínio de uma luta
em que se imbricam
o ódio – que assassina
o amor – que ressuscita.

E lavra em sua sanha
um código de honra
vetor do sangue
envelhecido no peito.

A honra alicerça a casa
e põe firmeza no braço
família coesa em ódio
vingança traçada em pacto.

A honra alimenta a saga
do circo retesa a corda
ao devassar o azul
trapézio da descoberta.

A honra refaz o ciclo
da morte e resplandece
no amor – alvitre do sonho
no mar – limite da vida.

                                                  (poema-combinação das sensações experimentadas vendo dois                     
filmes: Abril Despedaçado e Gerra de Canudos)


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

CAMPO MINADO


                      CHICO DE ASSIS

A Rejane (que deu o mote e os dois primeiros versos)



Quando se trata de gente
todo campo é minado
- disse a menina triste
sem perceber a verdade que disse.
Porque com gente é diferente
- disse o poeta
e o campo que a ela leva
é minado e regado a dor.

Há que se ter então
muito cuidado.
Desarmar com delicadeza
um por um dos artefatos.
Percorrer com destreza
as trilhas e atalhos
até chegar inteiro
ao presumido alvo.

È preciso então tatear
na noite
(quantas vezes depois da escuridão
explode incandescente luz?)
É preciso ouvir
com interrogativa paciência
(quantas vezes a palavra verdadeira
sucede ao infinito silêncio?).

É preciso enfim
dar o dito por não dito
o talvez pelo sim
o perdido por achado
o passado por presente
o futuro por passado.
Porque para lidar com gente
todo campo é minado.



quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

MÃE

Sei que não fui o filho
que querias.
Mas sei que fui uma parte tua.
Provavelmente a mais sofrida.
E certamente a mais sem fé.

Sendo assim como fui
agora que te foste
é natural que me sinta
duplamente só:
porque sem ti
em mim presente
eu estarei sem mim
pra todo o sempre!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

"O ATENEU" E OS PORTAIS DO INFERNO DANTESCO










Proponente: Francisco de Assis Rocha Filho
                                             Disciplina: Literatura Brasileira I
                                             Professor: Dr. Janilto Andrade


Introdução

                      O texto que nos remete a'O Ateneu de Raul Pompéia, e que foi objeto de avaliação em aula, é um texto de Rodrigo Gurgel, que nos parece marcado pelo ranço preconceituoso dos que não sabem distinguir entre a crítica literária – que deve estar isenta de qualquer propósito destrutivo – e a crítica feita para obter alguma projeção, seja de qual ordem for. Porque não se concebe que no romance em foco – considerado obra-prima por diversos expoentes da nossa literatura – o articulista do jornal paranaense (“Rascunho”) não tenha encontrado nada que merecesse o reconhecimento dos que acompanham e participam da cena literária, senão o seu parágrafo inicial (“Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta”). A partir daí, segundo ele, tudo não passará de “relíquias” que “enxovalham a obra do começo ao fim, construindo um universo de preciosismo que, para ser compreendido, exige dicionários e enciclopédias” ( RASCUNHO, junho de 2010).
                         Todas as tentativas de análises psicológicas das personagens – que traçam perfis riquíssimos nessa área, talvez só inferiores aos traçados por Machado de Assis – são transformadas em artimanhas de “um narrador sui generis, hábil em depreciar, mestre da chacota, que possui, entretanto, autocomplacência evangélica” (idem, ibidem). De resto, acusa o autor (ou o narrador, que ele não distingue um do outro) de dissimulado, narcisista e de se embrenhar na retórica como “refúgio do pernóstico, o instrumento por meio do qual ele camufla seus reais interesses, inclusive os sexuais” (idem, ibidem). Termina por condenar o livro todo como sendo “uma ofensiva gargalhada, a um passo da histeria”.
                                 Não nos compete aqui investigar as razões pelas quais o crítico enveredou pelo caminho mais fácil da fraseologia leviana. O que se percebe é que não há no texto qualquer esforço para fundamentar qualquer uma das suas análises em qualquer tópico mais consistente da teoria literária. E acusando Raul de “Enfermo de Retórica” - expressão com a qual intitula seu artigo -, parece se enredar numa enfermidade maior: a do superficialismo crônico, que disfarça na agressividade sua incapacidade de formular proposições com um mínimo de consistência. Vamos por isso deixá-lo de lado, a mastigar seu provincianismo raivoso, enquanto enveredamos nas trilhas abertas pela extensa fortuna crítica, já consolidada em torno do romance.


DEVASSANDO “O ATENEU”

                           É Mário de Andrade quem nos situa de forma mais direta na temática do romance, ao lado da possível intenção do autor ao escrevê-lo. Diz o escritor emblemático da Semana de Arte Moderna no Brasil: “Não é possível negar, as provas são fortes, que neste livro de ficção o escritor vazou a sua vingança contra o seu internamento no colégio Abilio. O Ateneu é uma caricatura sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia, dolorosissima, da vida psicológica dos internatos” (Livraria Martins Editora, São Paulo: 6ª edição, p. 173). “Abilio” era o nome do colégio carioca, onde o autor esteve de fato internado. Seu diretor, de nome homólogo ao do colégio e mais conhecido como o barão de Macaúbas, seria a origem do diretor do Ateneu, Aristarco, embora a opinião geral seja de que os dois guardem pouquíssimas semelhanças. Mesmo admitindo tenha sido outra a intenção do romancista, para o autor de Macunaima “quem quer que leia com maior intimidade O Ateneu, percebe logo que o romancista se vinga. Atira-se com um verdadeiro furor destrutivo contra tudo e todos do colégio... …Raul Pompéia se vinga. Se vinga do colégio com uma generalização tão abusiva e sentimental que chega à ingenuidade (idem, ibidem, p. 173)”.
                             Apesar do aparente caráter depreciativo contido na formulação, o próprio Mário realça que isso em nada reduz a grandeza social e literária da obra. Cita, por exemplo, as configurações de Aristarco, para sublinhar momentos em que “Raul Pompéia atinge as raias da genialidade. Não há nenhuma página sobre Aristarco que não seja magistral. A violência é prodigiosa, as imagens saltam inesperadas, de um vigor de realismo e de uma beleza de imaginação absolutamente excepcionais... ...Este será sempre um dos maiores méritos de Pompéia e sua invenção genial. Aristarco ficará como tipo heróico e sarcástico do diretor de colégio de uma unidade e poder de convicção como não conheço outro congênere na literatura universal” (Martins Editora, SP, 6ª ed., p. 180)
                        Já Lúcia Miguel Pereira descarta de saída a importância atual da discussão sobre as origens reais do Ateneu-Colégio, ou mesmo sobre os sentimentos que haveriam motivado o autor na construção de O Ateneu-Romance. Embora reconheça que no momento de publicação há de ter sido de grande interesse descobrir os traços de semelhança entre o Ateneu e o seu suposto modelo, “hoje já não importam tais indagações. Não sofrendo dos defeitos tão comuns nas obras intencionais, o livro como que se desprendeu completamente das circunstâncias de que se originou” (Itatiaia, Belo Horizonte; Editora da Universidade de São Paulo, SP, 1988, p. 108). A respeito de saber até que ponto no narrador (Sérgio) se encarnara o autor, ou se o drama de Sérgio seria o mesmo de Pompéia, Lúcia diz parecer provável que o seja, admitindo estivesse ali “a chave do destino trágico do escritor, da solidão que o levou ao suicídio, prisioneiro da própria hipersensibilidade” (1998, p. 108). Acentua, contudo, que a personificação melhor daquele drama está principalmente “na dor dos primeiros contatos com a vida, o choque de quem se vê de repente num ambiente desconhecido e o percebe hostil. Para exprimir esse sofrimento, Pompeia escolheu uma criança e um colégio, como poderia ter escolhido um recruta e uma caserna, uma mulher e a nova família onde entra pelo casamento” (idem, ibidem, p. 108).


QUANDO O “MUNDO” SE TORNA “INFERNO”


                Enfocando o estudo que fez, por ângulo diferente ao dos autores até aqui citados, Massaud Moisés sugere um diálogo d'O Ateneu com A Divina Comédia, de Dante. Segundo ele, a estrutura do livro é similar ao Inferno dantesco, (configuração que inclusive nos inspirou o título deste trabalho), correspondendo cada capítulo, episódio ou peripécia a um dos círculos infernais. Destaca então a fala inicial do pai de Sérgio – “Vais encontrar o mundo. Prepara-te para a luta”, cuja força de abertura é indiscutível e aceita como um feliz achado por todos -, entendendo-a “uma réplica cruel, na sua aparente sabedoria e desprendimento, do verso com que Dante desengana os que se destinam aos abismos de Satã: “Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate”. Bem podia o pai de Sérgio dizer-lhe que perdesse a esperança, pois adentrava o Inferno” (Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, l985, p. 122). Mantendo o cenário dantesco, Massaud afirma que os “doze capítulos d'O Ateneu parecem reproduzir os nove círculos infernais: os luxuriosos, os gulosos, os avaros, os pródigos, os iracundos, os agressivos, os enganadores ali se encontram” (idem, ibidem,p. 123).
                         Depois de longa digressão para demonstrar a adequação do paralelo estabelecido (sem dispensar uma competente incursão no terreno que Freud e a Psicanálise iriam explorar vastamente logo depois: “o Narrador mergulha no tempo à procura de sua e alheia infância, matriz das neuroses vindouras, e volta com um relato corrosivo, impiedoso mas verídico. Ao contrário de paraiso perdido, a infância é o Inferno: entra-se pela vida pagando os pecados presentes e futuros...” - 1985, p. 125 ), Massaud conclui lapidarmente:
                              “O Ateneu é uma narrativa de arte, a fábula do menino que se perdeu nos caldeirões infernais (simplesmente por ter vindo à vida e ingressado na escola) e que se lembra, em meio à interminável agonia, da salvação que a arte pode representar” (1985, p. 131).

UMA ESPERANÇA NATIMORTA


                               Além da arte, acrescentaríamos por nossa conta, o romance sugere que a salvação possa estar no amor. Que irrompe devastador n'O Ateneu, quando Sérgio baixa enfermaria e Ema, esposa de Aristarco, o acompanha veladamente, em todo o periodo de doença e convalescença. A paixão platônica (edipiana?), que atravessa todo o livro desde o primeiro encontro entre os dois, imprime-se então sem meias tintas, em páginas inesquecíveis e inapagáveis, retratos do belo, que o verdadeiro amor sabe produzir e que só a sensibilidade do verdadeiro artista sabe captar:
                          “Junto da cama, um velador modesto e uma cadeira. Ema sentava-se. Pousava os cotovelos à beira do colchão, o olhar nos meus olhos – aquele olhar inolvidável, negro, profundo como um abismo, bordado pelas seduções todas da vertigem. Eu não podia resistir, fechava as pálpebras; sentia ainda na pálpebra com o hálito de veludo a carícia daquela atenção” (2009, p. 163).
E em continuidade:
                               “Aristarco surgia às vezes solenemente, sem demorar. Ângela nunca. Fora-lhe proibida a entrada. (Ângela, grifo nosso, era expressão da luxúria que adornou os passos de todos os alunos durante todo o tempo de internato. A proibição de sua entrada no quarto do enfermo sugere o sentimento que Ema já nutriria por ele e os ciúmes que lhe provocariam a presença da “rival” no quarto). Junto da cama, D. Ema comovia-se... ...Tirava-me a mão, prendia nas dela, tempo esquecido; luzia-lhe no olhar um brilho de pranto” (2009, p. 164)
Ou ainda mais:
                          “Fez-se-me desesperada necessidade a companhia da boa senhora. Não! Eu não amara nunca assim a minha mãe. Ela andava agora em viagem por países remotos, como se não vivesse mais para mim. Eu não sentia a falta. Não pensava nela... Escureceu-me as recordações aquele olhar negro, belo, poderoso, como se perdem as linhas, as formas, os perfis, as tintas, de noite, no aniquilamento uniforme da sombra” (2009, p. 165).
Para concluir:
                   “A convivência cotidiana na solidão do aposento estabelecera a entranhada familiaridade dos casais. Ema afetava não ter mais para mim avarezas de colchete. “Sérgio, meu filhinho”. Dava-me os bons dias... ...Debruçava-se expansiva, resplendendo a formosura sobre mim, na gola do penhoar, como um derramamento de flores de uma cornucópia... ...olhava-me de perto, bem dentro dos olhos, num encontro inebriante de olhares. Aproximava o rosto e contava, lábios sobre lábios, mimosas historietas sem texto, em que falava mais a vivacidade sanguínea da boca, do que a imperceptivel confusão de arrulhos cantando-lhe na garganta como um colar sonoro” (2009, 167).

                   Se o romance terminasse aqui, seria um hino de esperança e confiança no futuro, espécie de prêmio por todas as desventuras e amarguras vividas num meio, onde Sérgio encontrara predominantemente a maldade do homem, ou aquilo que a espécie humana carrega de inclinação irrefreável para o mal. Mas se o romance terminasse aqui, não seria um romance de Raul Pompéia, um ser corroído pela angústia do desespero no enfrentamento do dia a dia, contingência que o levou ao suicídio, sete anos depois da publicação d'O Ateneu.
            Um ser descrente, absolutamente cético de tudo, teria que encaminhar seu narrador – ou, se quiserem, ser conduzido por ele, pois ninguém descobriu até hoje quem domina quem na elaboração de uma obra ficcional – a um desfecho mais consentâneo com o pessimismo crônico, entranhado na concepção de mundo que Pompéia esposou e alardeou no transcorrer de sua curta existência. Embora enlevado, vivendo o ápice de um momento raro de felicidade, naquele meio que sempre lhe fora hostil, Sérgio tinha surtos premonitórios do que poderia vir: “Apavorava-me um susto, alarma eterno dos felizes, azedume insanável dos melhores dias: não fosse subitamente destruir-se a situação” (2009, p. 165). E tão subitamente quanto fora construída, a situação desmoronou. Qual vaga-lume, a esperança embutida no amor finalmente descoberto luziu no quarto escuro e no momento seguinte apagou. Só que para sempre:
                         “E tudo acabou com um fim brusco de mau romance... Um grito súbito fez-me estremecer no leito: Fogo! Fogo! Abri violentamente a janela. O Ateneu ardia.” (2009, 168).

CONCLUSÃO


                 Deixamos de lado, propositadamente, a polêmica sobre em qual das mais conhecidas escolas literárias poderíamos enquadrar O Ateneu. São diversas as classificações feitas, como diferente também a autoridade de quem as faz. Começa por Mário de Andrade, ícone da Semana de Arte Moderna e escritor de rara envergadura na literatura nacional, que o coloca como naturalista. Segue-se Lúcia Miguel Pereira, de estatura similar na crítica, que o situa como realista, próximo inclusive do realismo psicológico exercitado por Machado de Assis. No meio dessas duas definições, encontra-se a de se tratar de obra vinculada ao impressionismo – que não forma propriamente uma escola literária, sendo antes um aspecto estilístico da linguagem – feita por críticos da estirpe de um Otto Maria Carpeaux, Afrânio Coutinho, Assis Brasil, entre outros.
                Preferimos, assim, não nos alongar no assunto. Naturalista, realista, impressionista, já não é importante saber em qual desses cânones caberiam O Ateneu e seu autor. Até porque, todos quantos se revelaram divergentes na classificação, convergem unanimemente para aceitar a definição sumária de Massaud Moisés: “O Ateneu é a obra, retrato acabado e exclusivo de uma vida e de uma concepção de arte: obra-prima” (1985, p. 133). E é compatível com essa definição o final antológico que Raul Pompéia eternizou no romance:
                                “Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez, se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas” (2009, p. 172 – grifo nosso).




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário de. - Aspectos da Literatura Brasileira – Martins Editora S. A. São Paulo: 6ª edição.
GURGEL, Rodrigo – Enfermo de retórica – Artigo publicado no jornal Rascunho, Curitiba, junho de 2010.
MASSAUD, Moisés – História da Literatura Brasileira (REALISMO) – Vol. III –2ª edição - Cultrix, São Paulo: 1985.
PEREIRA, Lúcia Miguel – Prosa de Ficção (de 1870 a 1920) – Itatiaia, Belo Horizonte; Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo: 1988.
POMPÉIA, Raul – O Ateneu – 1ª edição - Editora Saraiva, São Paulo: 2009. 



segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O CÃO SEM PLUMAS DE UMA POESIA DESPOETIZADA


UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

Autor: Francisco de Assis Rocha Filho
Disciplina: Literatura e sua Interface com a Cultura Brasileira
Professor: Dr. Alexandre Furtado


Introdução


Apesar de avesso à emoção e de refutar qualquer participação da mesma em seu labor poético, João Cabral de Melo Neto confessa que O Cão sem Plumas nasceu paradoxalmente de um choque emocional. O livro, emblemático de uma das “duas águas” em que o próprio poeta inseriu sua produção, foi concebido em Barcelona, a partir da comoção experimentada na leitura d'O Observador Econômico e Financeiro, através da qual “soube que a expectativa de vida no Recife era de 28 anos, enquanto que na India era de 29” (Org: ATHAIDE, Félix de. 1998, p. 104).
“Se isto acontecia na minha terra , eu precisava denunciá-lo. Como a poesia é minha forma de expressão, usei-a e escrevi O Cão sem plumas” (MELO NETO apud VERNIERI, Susana, 1999, p. 87)
José Castello, em João Cabral de Melo Neto – O Homem sem Alma, anota que Cabral vivia um contexto de crise. Considerava que, com Psicologia da Composição, seus poemas teriam atingido o máximo de abstração. “A chegada a essa fronteira abstrata lhe traz a convicção de que deve parar de escrever. De que chegou a seu limite, porque depois da abstração ele só pode ver o vazio.” (Bertrand Brasil, Rio de Janeiro: 2006, p. 95).
Com o abalo sofrido ao receber a informação até então desconhecida, muda de ideia e passa a trabalhar no poema. Transformado em livro em 1950, O Cão sem Plumas transformou-se em ponto de inflexão e de ruptura, na obra cabralina. Já em 1953, avaliando o que houvera produzido até então, Cabral assinala no tom cáustico que lhe é peculiar:
“...compreendi que aquilo era um beco sem saída, que poderia passar o resto da vida fazendo esses poeminhas amáveis, requintados, dirigidos especialmente a certas almas sutis. Foi dai que resolvi dar meia-volta e enfrentar esse monstro: o assunto, o tema. O Cão sem Plumas, meu livro seguinte, foi a consequência” ( 1998, p. 104).
Alfredo Bosi, com a autoridade de que se revestem suas formulações críticas, registra também esse elemento de ruptura emergente no novo livro:
“Foi com os instrumentos devidamente afiados que João Cabral passou de uma linguagem autocentrada (verdadeira metalinguagem em Antiode), para o tratamento da substância natural e humana de sua província, dando em O Cão sem Plumas aquele salto participante que viria a ser, nas décadas de 50 e de 60, uma exigência ética, sentida por toda a cultura brasileira (Cultrix: São Paulo, 2006, p. 503).
Assim nasceu O Cão sem Plumas, cercado inclusive de ineditismos. Foi o último livro que João Cabral imprimiu em sua prensa manual, utilizada diversas vezes para editar suas obras anteriores. Foi o primeiro em que veio a falar de Pernambuco. “Eu o escrevi em Barcelona, a caminho de Londres. Eu precisei desse recuo fora do Brasil, para escrever sobre Pernambuco” (1998, p. 104). E foi sem dúvidas o primeiro vetor do impulso que levaria o poeta, seis anos mais tarde, a dividir sua poesia em Duas Águas, quando da publicação do livro homônimo. A respeito dessa divisão, observe-se o que está dito nas orelhas – não assinadas – do livro, provavelmente escritas pelo próprio autor:
Duas Águas – feliz sugestão de Annibal Machado para o título do volume – correspondem não a poemas herméticos e a poemas claros, não a poemas regionalistas e poemas universalistas, tampouco a poemas tensos e poemas distensos formalmente, pois que, a rigor, tais oposições não existem radicalmente na produção do autor de O Engenheiro. Duas Águas querem corresponder a duas intenções do autor e - decorrentemente – a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou ouvinte: de um lado, poemas para serem lido em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige, mais do que leitura, releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos. Noutros termos, o poeta alterna o esforço de melhor expressão com o de melhor comunicação” (Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. LII, “Fortuna Crítica”). Insere O Cão sem Plumas na água em que não se pode mergulhar plenamente, senão depois de senti-la passar pelo corpo indefinidas vezes.
Foi o que fizemos prazerosamente, para extrair desse mergulho as observações que seguem:


O CÃO SEM PELOS, O VIRA-LATAS, O CÃO DE RUA


João Cabral se reporta a Ezra Pound para definir sua poesia como de fanopeia, colocando-se na poesia de língua portuguesa como exceção tão notável quanto Cesário Verde. Segundo o poeta americano, há três tipos de poesia: a fanopeia, que apresenta uma realidade visual ou visualizável (Cesário Verde, Lorca e até Dante); a melopeia, de sugestão auditiva como a música (Verlaine e Eugênio de Castro), e a logopeia, poesia que transmite uma ideia (sonetos de Camões).
Para mim, a posição mais equilibrada da poesia está na fanopeia, porque ao sugerir uma maçã, cria um símbolo, um objeto concreto” (1998, p. 72)
Acrescenta a essa definição uma ordem conclusiva de raciocínio:
A poesia não é a síntese do pensamento. Vc pode dizer o seguinte: a poesia é o pensamento tornado imagem, vamos dizer. Agora, se tornar uma coisa abstrata como o pensamento em imagem, que é uma coisa concreta, se isso significa um trabalho de síntese, ai é preciso discutir o sentido, todos os sentidos possíveis da palavra síntese. A minha ideia de poesia é dar corpo, dar imagem ao pensamento, à ideia” (1998, p. 73).
Cão sem plumas é um produto exemplar do emprego sistemático dos símbolos e das imagens, como expressão e condução do discurso poético. A começar pelo título, que provoca de início rejeições no círculo de amigos a que o poeta deu a conhecer seu novo trabalho. No registro de José Castello, Rubem Braga foi um deles: “Esse título é horrível, não significa nada. Se um cão não tem plumas, como pode ficar sem elas?” Ao que Cabral teria retrucado: “Pior vai ser o dia em que o rio vier a falar”. Isso acontecerá mais tarde, no poema “O Rio”, em que o Capibaribe sobrepõe sua voz às impressões do poeta” (2006, p. 100).
O poeta pressentia que a estranheza provocada pela singularidade dos símbolos utilizados logo seria substituída pelo enlevo, resultante da percepção do profundo conteúdo social de que estaria revestido cada um desses símbolos. O rio contemplado e descrito – pela primeira vez em seu labor poético – é o Capibaribe, rio que corta a cidade onde o poeta nasceu, o Recife, encravada na região nordestina, uma das mais pobres das regiões brasileiras. Era mais pobre quando o poeta exercitou essa contemplação e ainda pior quando considerado o tempo que a memória evoca para transformar em poesia:
“Eu escrevi com a lembrança da minha infância (durante a qual todas as casas em que morei ficavam em torno do Capibaribe). O que acontece é que o progresso do Recife, com os arranha-céus, com tudo isso, tirou muito da paisagem que eu tento descrever, tanto em O Cão sem plumas, como em O Rio, como em Morte e Vida Severina” (2008, p. 777).
Nada a estranhar então, quanto à metáfora escolhida para simbolizar a lembrança daquele rio, cujo passar pela cidade é comparado, logo no primeiro verso, com “uma rua/passada por um cachorro” (OCSP)*. A imagem fica ainda socialmente mais forte. O rio passa pela cidade como um cachorro pela rua. O cachorro de rua é o vira-latas, que a percorre na expressão inteira do seu abandono. Não tem as firulas dos cãozinhos de madame, com seus badulaques e correntes, seus pelos felpudos e macios. O cão a que se reporta a imagem cabralina do rio, em todo o poema, é o cão desamparado, despelado (significação de “sem plumas” sugerida por Alfredo Bosi – 2006, p. 503), que lambe mansamente as mãos do dono, ou arrasta pelas ruas seu “ventre triste” (faminto) ou ainda o “aquoso pano sujo/dos olhos de um cão”(OCSP) - o vira-latas tem os olhos sempre remelentos. Longe de plumas ou de se exibir como uma ave em seu conjunto de plumas, o cão através do qual Cabral “dá a ver” o Capibaribe no poema é incolor.
Por isso, o rio não sabia de cores vivas. “Não sabia da chuva azul/da fonte cor-de-rosa/da água do copo de água/da água de cântaro,/dos peixes de água,/dos peixes de água,/da brisa na água”(OCSP). Sabia, contudo, “dos caranguejos/de lodo e ferrugem./Sabia da lama/como de uma mucosa”(OCSP). O rio cantado por Cabral é o rio que carreia os detritos dos sobrados e mocambos recifenses, que conduz “algo da estagnação/das árvores obesas/pingando os mil açúcares/das salas de jantar pernambucanas/por onde se veio arrastando”(OCSP).
Nessas salas de jantar circulam “as grandes famílias espirituais” da cidade. “De costas para o rio”, elas “chocam os ovos grandes/de sua prosa... ...revolvem viciosamente/seus caldeirões/de preguiça viscosa”(OCSP), enquanto lá fora o rio “Em silêncio se dá:/em capas de terra negra,/em botinas ou luvas de terra negra/para o pé ou a mão/que mergulha”(OCSP).




*Todas as citações de O Cão sem Plumas estão seguidas da abreviatura OCSP entre parênteses e foram extraidas da edição, em volume único, de Poesia Completa e Prosa, Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 2008.


O rio descrito na primeira parte do poema demarca as profundas contradições sociais em que até hoje se debate a gente nordestina, formada pelos que vivem na suntuosidade dos palácios ou no conforto de prédios e arranha-céus e aqueles que afundam na lama ou formam o homem “ao menos capaz de roer/os ossos do ofício; capaz de sangrar/ na praça;capaz de gritar/se a moenda lhe mastiga o braço;/capaz/ de ter a vida mastigada/e não apenas/ dissolvida” (OCSP). O rio ai descrito é um rio que flui lentamente ou estanca intermitentemente nos acidentes da existência miserável que circunda suas margens. É um rio que nunca “saltou alegre em alguma parte”, nem nunca “foi canção ou fonte”. É um rio que “fluvializa” o homem (“naquela água macia/que amolece seus ossos/como amoleceu as pedras” - OCSP). Este homem se confunde com o rio e com ele passa a caminhar na segunda parte do poema.


O RIO E O HOMEM DESPLUMADOS


O homem que João Cabral insere em sua descrição da Paisagem do Capibaribe II é o homem identificado também como “cão sem plumas” pelo poeta, que acrescenta ai novas características da metáfora utilizada: “Um cão sem plumas/é quando uma árvore sem voz./É quando de um pássaro/suas raízes no ar./É quando a alguma coisa/roem tão fundo/até o que não tem” (OCSP). Como indica Benedito Nunes, cão sem plumas é “todo ser violentado, cujos atributos se truncam e se confundem... ...Sua forma de existir é não ser, pois que só existe como realidade negada em si mesma... ...O rio conhece os homens sem plumas, seus homônimos, que vão nele perder-se numa conivência de suas naturezas idênticas, ambas corroídas ou desfalcadas, ambas se confundindo na dissolução comum, que humaniza o rio e fluvializa o homem” (NUNES, Editora UnB, Brasília: 2007, p. 48). É imagem, portanto, que nada tem, como pensaram alguns, de surrealista, no sentido de traduzir uma escrita saida diretamente do inconsciente ou das regiões oníricas para onde nos conduzem os sonhos. É imagem crua, extraída do real, visualizado por um artista que se recusa a explorar ou descrever a própria emoção, porque tem consciência que “a obrigação do poeta é criar um objeto, um poema, que seja capaz de provocar emoção no leitor” (1998, p. 29). E não há de faltar emoção a qualquer leitor que se depare com a configuração do homem, arquitetada no poema cabralino, em interação simbiótica com a geografia e as condições de vida em que esse homem estaria fixado: “Na paisagem do rio/difícil é saber/onde começa o rio/onde a lama/começa do rio;/onde a terra/ começa da lama;/onde o homem/onde a pele/começa da lama/onde começa o homem/naquele homem” (OCSP).
O homem esculpido nessa construção literária nos remete a outras, tentadas por autores de envergadura similar à de Cabral. Como Josué de Castro, que nos diz em homens e caranguejos: “Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos” (Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 3ª edição, 2007, p. 10).
Ou ainda, se quisermos nos manter na seara exclusiva dos poetas e da poesia, ela nos reporta aos elementos contidos no antológico O Bicho, do seu conterrâneo Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos.//Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade.//O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato.//O bicho, meu Deus, era um homem” (L&PM Pocket, 2009, p.119).
Em análise sobre O Cão sem plumas, que transformou em livro depois de apresentá-la, em 1997, como dissertação de Mestrado, junto à UFRGS, Susana Vernieri diz que “ao mesmo tempo que é magma da vida, a lama também possui um outro lado mais aparentado com a morte” (Annablume, Rio de Janeiro: 1999, p. 93). Talvez por isso, aquele rio “jamais se abre aos peixes” (OCSP). Representante simbólico da vida, o animal não tem espaço pra reproduzir-se naquele rio estagnado. “Pode-se pensar então que o existente no curso daquela parte inicial do Capibaribe de O Cão sem Plumas seria a morte. E à vida restaria o espaço de afirmar-se pela sua inexistência” (1999, p. 95). Assim como a palavra, deduzimos, se afirma também pelo silêncio, que não significa mudez e é tomado aqui no sentido heideggeriano, como uma possibilidade constitutiva do discurso:
Silenciar não significa ficar mudo. Ao contrário, o mudo é a tendência 'para falar'. O mudo não apenas não provou que pode silenciar, como lhe falta até a possibilidade de prová-lo... Silenciar em sentido próprio só é possível num discurso autêntico” (HEIDEGGER apud VERNIERI, p. 112).
Depois de dissolvidos um no outro, o rio/cão/homem do poeta, homogeneizados pela falta de plumas, conectam-se com o silêncio, com a força do não dito ou como quer Clarice Lispector com o que “fica atrás do pensamento” (Rocco, 1998, p. 12) e nos remetem à terceira parte do poema, onde lutam com e confluem para o mar.
A LAMA COMO MAGMA DA VIDA


Na Fábula do Capibaribe, Cabral faz a passagem da lama aparentada com a morte para a lama como magma da vida. E recupera a imagem da espada (usada no início do poema), dando-lhe agora o vigor fecundante que penetra a cidade e “se derrama,/por aquela/úmida gengiva de espada” (OCSP). Fecundando-a, cortando-a bem ao meio, fazendo-a sangrar em vários afluentes, a espada transforma a cidade e a faz crescer. Como assinala o próprio poeta, “a terceira parte é uma espécie de fábula da formação do Recife pelo rio. O aumento da área da cidade por obra do rio está acontecendo na realidade. Para notar isso, basta comparar os mapas atuais com os mapas do Recife no tempo dos holandeses” (1998, p. 103).
A espada arma também o rio para o confronto com o mar. Este, primeiro “se fecha/a tudo o que no rio/são flores de terra/imagem de cão ou mendigo.//Depois/o mar invade o rio./Quer/ o mar/destruir no rio/suas flores de terra inchada” (OCSP). Mas antes desse confronto, antes de ser lavado e purificado de todos os detritos pelo mar (“que o mar está sempre/com seus dentes e seu sabão/roendo suas praias” - OCSP), “junta-se o rio/a outros rios./Juntos,/todos os rios/preparam sua luta/de água parada” (OCSP). É um movimento semelhante ao configurado pelo poeta, em poema posterior (Tecendo a Manhã), de Educação Pela Pedra: “Um galo sozinho não tece uma manhã:/ele precisará sempre de outros galos” (2008, p. 319).
Como o galo tecendo a manhã, o rio se encorpou com outros rios, formando mangues, visualizados pelo poeta como uma enorme fruta, ganhando assim agilidade e força, “a mesma máquina/paciente e útil/de uma fruta; a mesma força/invencível e anônima/de uma fruta” (OCSP), que se articula em sua espessura (“uma maçã/é muito mais espessa/se um homem a come/do que se um homem a vê” - OCSP) e se transforma em sintaxe. Porque, como Cabral assinalará depois no poema Rios sem Discurso, de Educação Pela Pedra, “o curso de um rio, seu discurso-rio/chega raramente a se reatar de vez;/um rio precisa de muito fio de água/para refazer o fio antigo que o fez./...para que todos os poços se enfrasem:/se reatando de um para outro poço/em frases curtas, então frase e frase/até a sentença-rio do discurso único” (2008, p. 325).


UM RIO DE POESIA
É então reatando ou recompondo todos os fios de água distribuídos no acidentado caminhar do cão sem plumas (rio), que João Cabral nos remete à quarta parte do poema, quando o rio se transforma em poesia. Segundo o poeta, “uma autocrítica da minha poesia anterior” (1998, p. 103). Embora recorra as mesmas imagens utilizadas antes, elas agora se revitalizam. O rio já não é o cão lamacento, pesado, “liso como o ventre/de uma cadela fecunda” (OCSP), mas salta ágil na memória “como um cão vivo/dentro de uma sala” (OCSP); o homem também vive e “porque vive/choca com o que vive” (OCSP), assim como a fruta se faz mais espessa, porque “(uma maçã)/é ainda mais espessa/se a fome a come./Como é ainda muito mais espessa/se não a pode comer/a fome que a vê” (OCSP). Impulsionados pela espessura da fome não saciada, ganhando a consistência de uma fruta cobiçada, o rio, o cão e o homem, antes violentados pelas agressões de uma natureza hostil e agora transformados numa torrente única, acenam para a luta, como fermento da vida: “Porque é muito mais espessa/a vida que se desdobra/ em mais vida... …porque é mais espessa/a vida que se luta/cada dia,/o dia que se adquire/cada dia/(como uma ave/que vai cada segundo/conquistando seu vôo” (OCSP).
Por esse último verso, podemos dizer que o cão sem plumas recupera a condição de ave, reclamada pelos tantos que estranharam o sem plumas como expressão associada a um cão, e nos remete ao Pavão Misterioso, 1976, composição de Ednardo, inspirada na literatura de cordel e trilha sonora da novela Saramandaia, da Rede Globo, cujos versos finais ironizam e desqualificam a força dos prepotentes:
“...eles são muitos
mas não podem voar”.
CONCLUSÃO


A unanimidade da crítica coloca O Cão sem Plumas como marco fundamental da obra cabralina. O poema é visto, ora como coroamento de toda a aprendizagem praticada pelo poeta em seus livros anteriores (com destaque para O Engenheiro e Psicologia da Composição), ora como base a partir da qual construiu todo o resto de sua obra (particularmente, O Rio e Morte e Vida Severina, que formam com O Cão sem Plumas o chamado “tríptico do rio”).
Foi a partir daí que Cabral esboçou com inteira segurança a fórmula essencial de que iria se revestir sua poética: não poetizar o poema. Fórmula que ele viria a consagrar, definitivamente, nos versos de Alguns Toureiros, em Paisagens com Figuras: “sim, eu vi Manoel Rodriguez,/ Manolete, o mais asceta/não só cultivar sua flor/mas demonstrar aos poetas://como domar a explosão/com mão serena e contida/sem deixar que se derrame/a flor que traz escondida//
e como, então, trabalhá-la/com mão certa, pouca e extrema:/sem perfumar sua flor/sem poetizar seu poema”. (2008, p. 134). Essa fórmula (cujos vestigios iniciais se acham presentes mesmo em Pedra do Sono, seu primeiro livro) se irá transformando gradativamente em obsessão, até se consolidar em O Cão sem Plumas, como bússola através da qual o poeta se orientará, na meticulosa elaboração dos inúmeros textos, poemas e livros ainda por vir.
José Castello diz que é “dessa perspectiva, de uma poesia livre do poético (entendido como aquelas normas traçadas por parnasianos e simbolistas e que se confundem até hoje com poesia), é desse lugar vazado, sem os atributos da inspiração e do lirismo (“eu me situo na linha dos poetas marginais, porque sou profundamente antilírico” – 1998, p. 55) esse lugar seco e portanto capaz de tudo, que Cabral critica seus pares, sejam outros poetas, sejam toureiros (2006, p. 158/159). Também Benedito Nunes pondera: “Miniatura da arte poética de João Cabral, na qual já se acham traçadas ou esboçadas as linhas mestras que se fixarão nas obras seguintes, O Cão sem Plumas dispõe de impressionante bateria de recursos retóricos. E é nele que se dá a bifurcação dessa arte em dois tipos de dicção (NUNES, 2007, p. 50). Ou em duas águas, como ficou mais conhecida a divisão da obra poética de Cabral. Finalmente, João Alexandre Barbosa arremata o raciocínio dos aqui ligeiramente pinçados: “Em O Cão sem plumas, a negação, a recusa e o silêncio articulam-se para uma afirmação dialética da poesia, enquanto instrumento de uma busca de significação a ser encontrada, aprofundando os termos daquilo que já estava presente, como se viu, em alguns poemas do seu primeiro livro... … a recusa da poesia poderá ser o encontro de uma poética (Ateliê Editorial, 2006, p. 156/157, grifo nosso).
Não bastassem tantas e tão significativas referências a respeito, temos o próprio poeta extraindo do seu labor a conclusão lapidar:
Eu digo que aprendi com Manolete a não poetizar o poema. Porque esse é o problema de muito poeta: é que ele faz um poema poético. Quer dizer, faz um poema a partir de elementos já convencionalmente poéticos. Ele perfuma a flor. É como você plantar uma rosa e depois achar que a rosa não está cheirando o suficiente e ai pôr, em cima da rosa, perfume de rosas para ela cheirar mais. Ele perfuma o poema” (1998, p. 70).
É assim, lidando com essa espécie de contradição em termos (a de ser poeta, abominando a designação; a de fazer poesia, despoetizando-a) que João Cabral chega a súplica, quase patética, contida em seu Último Poema:


Não sei quem me manda a poesia
nem se Quem disso a chamaria.
Mas quem quer que seja, quem for
esse Quem (eu mesmo, meu suor?),
seja mulher, paisagem ou o não
de que há que prender os vãos,
fazer, por exemplo, a muleta
que faz andar minha alma esquerda,
ao Quem que se dá à inglória pena
peço: que meu último poema
mande-o ainda em poema perverso,
de antilira, feito em antiverso”
(Em Agrestes, Nova Fronteira, 2008, p. 528)
Referências Bibliográficas


ATHAIDE, Félix de. (org) – Ideias Fixas de João Cabral de Melo Neto – Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1998
BANDEIRA, Manuel – Bandeira de Bolso – Uma Antologia Poética – L&PM Pocket: Porto Alegre, 2009
BARBOSA, João Alexandre – Alguma Crítica – Ateliê Editorial: São Paulo, 2002
BOSI, Alfredo – História Concisa da Literatura – 47ª edição - Cultrix: São Paulo, 2006
CASTELLO, José – João Cabral de Melo Neto: o Homem sem Alma – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006
CASTRO, Josué de. - Homens e Caranguejos – Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2007
LISPECTOR, Clarice – Água Viva – Rocco: Rio de Janeiro, 1998
MELO NETO, João Cabral de. - Poesia Completa e Prosa – Org: Antonio Carlos Secchin –
2ª edição – Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 2008
NUNES, Benedito – João Cabral: a máquina do poema – Org: Adalberto Muller – Brasília: UnB, 2007
VERNIERI, Susana – O Capibaribe de João Cabral em O Cão sem Plumas e o Rio: Duas Águas? -
Annablume: São Paulo, 1999.





domingo, 4 de dezembro de 2011

O FILÓSOFO DA BOLA



                                             Chico de Assis



A bola dança a sua frente
moleca
e ele a domina no capricho
na conversa
metendo-a entre pernas
perplexas
face ao passe
em calcanhar
de precisão milimétrica.

Agora só o céu está em festa.
Lá o recebem Garrincha
o anjo das pernas tortas
Didi - o mago da folha seca
Ademir e outros mestres
da conversa com a bola
filosofal como uma pedra
que comovida reverte
o caminho dos céus à terra
para ouvir o grito
em delírio da multidão:
É campeão
                 é campeão
                                    é CAMPEÃAAAAAAAAAAAAAAAAO!

                                                                                 
                                                                             04 DE DEZEMBRO DE 2011.


                                                                         



sábado, 3 de dezembro de 2011

ÚLTIMO REFÚGIO



                                                                                             CHICO DE ASSIS
Quando na estação central
seus trens e pássaros metálicos
convidavam à liberdade,
eu olhava de um salão
intermuros , murmúrios
a vida passando
ao longo e ao longe.

Eram sonhos
entesourados
na bolsa da juventude
revoltas inquietudes
mitigadas na solidão
do cárcere que espezinhava
parcelas do nosso povo,
amor brotando de novo
em tendas de ansiedade
batendo louco em paredes
em túneis que não se abrem
em vidas que se esvaziam
por entre torres
e sabres.


Ah, era o tempo da História
brincando com seus atores
teatro enorme de luzes
opacas sem refletores
a se perderem no rio
que a correnteza agitava
e que a todos marcava
com suas águas barrentas
que nunca inundavam a ponte
pela opressão sustentada
e nem quebravam os grilhões
da gente que a circundava


Havia então um país
e um povo em dura labuta
camponeses peregrinos
operários sem batutas
estudantes cujo hino
nacional cantarolavam
em pelejas pelas ruas
feitas de pedra e calçada
que arrebentavam cabeças
no meio da enxurrada
de tiros gritos e homens
deserdados da alegria
tecidos pela miséria
fornidos na utopia
que a noite realentava
e na manhã sucumbia.

Ah, são fracas as forças
e fortes as estruturas
que em luta se digladiam,
na vespertina lembrança
do homem só
sem guarida
que dá a volta no tempo
em sua esperança última
refém de sua agonia
olhando a estação central
sem pássaro sem trem
sem sonho sem fantasia
sente a inclemência do sol
e aterrado ao chão
no nada se refugia.