segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O CÃO SEM PLUMAS DE UMA POESIA DESPOETIZADA


UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

Autor: Francisco de Assis Rocha Filho
Disciplina: Literatura e sua Interface com a Cultura Brasileira
Professor: Dr. Alexandre Furtado


Introdução


Apesar de avesso à emoção e de refutar qualquer participação da mesma em seu labor poético, João Cabral de Melo Neto confessa que O Cão sem Plumas nasceu paradoxalmente de um choque emocional. O livro, emblemático de uma das “duas águas” em que o próprio poeta inseriu sua produção, foi concebido em Barcelona, a partir da comoção experimentada na leitura d'O Observador Econômico e Financeiro, através da qual “soube que a expectativa de vida no Recife era de 28 anos, enquanto que na India era de 29” (Org: ATHAIDE, Félix de. 1998, p. 104).
“Se isto acontecia na minha terra , eu precisava denunciá-lo. Como a poesia é minha forma de expressão, usei-a e escrevi O Cão sem plumas” (MELO NETO apud VERNIERI, Susana, 1999, p. 87)
José Castello, em João Cabral de Melo Neto – O Homem sem Alma, anota que Cabral vivia um contexto de crise. Considerava que, com Psicologia da Composição, seus poemas teriam atingido o máximo de abstração. “A chegada a essa fronteira abstrata lhe traz a convicção de que deve parar de escrever. De que chegou a seu limite, porque depois da abstração ele só pode ver o vazio.” (Bertrand Brasil, Rio de Janeiro: 2006, p. 95).
Com o abalo sofrido ao receber a informação até então desconhecida, muda de ideia e passa a trabalhar no poema. Transformado em livro em 1950, O Cão sem Plumas transformou-se em ponto de inflexão e de ruptura, na obra cabralina. Já em 1953, avaliando o que houvera produzido até então, Cabral assinala no tom cáustico que lhe é peculiar:
“...compreendi que aquilo era um beco sem saída, que poderia passar o resto da vida fazendo esses poeminhas amáveis, requintados, dirigidos especialmente a certas almas sutis. Foi dai que resolvi dar meia-volta e enfrentar esse monstro: o assunto, o tema. O Cão sem Plumas, meu livro seguinte, foi a consequência” ( 1998, p. 104).
Alfredo Bosi, com a autoridade de que se revestem suas formulações críticas, registra também esse elemento de ruptura emergente no novo livro:
“Foi com os instrumentos devidamente afiados que João Cabral passou de uma linguagem autocentrada (verdadeira metalinguagem em Antiode), para o tratamento da substância natural e humana de sua província, dando em O Cão sem Plumas aquele salto participante que viria a ser, nas décadas de 50 e de 60, uma exigência ética, sentida por toda a cultura brasileira (Cultrix: São Paulo, 2006, p. 503).
Assim nasceu O Cão sem Plumas, cercado inclusive de ineditismos. Foi o último livro que João Cabral imprimiu em sua prensa manual, utilizada diversas vezes para editar suas obras anteriores. Foi o primeiro em que veio a falar de Pernambuco. “Eu o escrevi em Barcelona, a caminho de Londres. Eu precisei desse recuo fora do Brasil, para escrever sobre Pernambuco” (1998, p. 104). E foi sem dúvidas o primeiro vetor do impulso que levaria o poeta, seis anos mais tarde, a dividir sua poesia em Duas Águas, quando da publicação do livro homônimo. A respeito dessa divisão, observe-se o que está dito nas orelhas – não assinadas – do livro, provavelmente escritas pelo próprio autor:
Duas Águas – feliz sugestão de Annibal Machado para o título do volume – correspondem não a poemas herméticos e a poemas claros, não a poemas regionalistas e poemas universalistas, tampouco a poemas tensos e poemas distensos formalmente, pois que, a rigor, tais oposições não existem radicalmente na produção do autor de O Engenheiro. Duas Águas querem corresponder a duas intenções do autor e - decorrentemente – a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou ouvinte: de um lado, poemas para serem lido em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige, mais do que leitura, releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos. Noutros termos, o poeta alterna o esforço de melhor expressão com o de melhor comunicação” (Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. LII, “Fortuna Crítica”). Insere O Cão sem Plumas na água em que não se pode mergulhar plenamente, senão depois de senti-la passar pelo corpo indefinidas vezes.
Foi o que fizemos prazerosamente, para extrair desse mergulho as observações que seguem:


O CÃO SEM PELOS, O VIRA-LATAS, O CÃO DE RUA


João Cabral se reporta a Ezra Pound para definir sua poesia como de fanopeia, colocando-se na poesia de língua portuguesa como exceção tão notável quanto Cesário Verde. Segundo o poeta americano, há três tipos de poesia: a fanopeia, que apresenta uma realidade visual ou visualizável (Cesário Verde, Lorca e até Dante); a melopeia, de sugestão auditiva como a música (Verlaine e Eugênio de Castro), e a logopeia, poesia que transmite uma ideia (sonetos de Camões).
Para mim, a posição mais equilibrada da poesia está na fanopeia, porque ao sugerir uma maçã, cria um símbolo, um objeto concreto” (1998, p. 72)
Acrescenta a essa definição uma ordem conclusiva de raciocínio:
A poesia não é a síntese do pensamento. Vc pode dizer o seguinte: a poesia é o pensamento tornado imagem, vamos dizer. Agora, se tornar uma coisa abstrata como o pensamento em imagem, que é uma coisa concreta, se isso significa um trabalho de síntese, ai é preciso discutir o sentido, todos os sentidos possíveis da palavra síntese. A minha ideia de poesia é dar corpo, dar imagem ao pensamento, à ideia” (1998, p. 73).
Cão sem plumas é um produto exemplar do emprego sistemático dos símbolos e das imagens, como expressão e condução do discurso poético. A começar pelo título, que provoca de início rejeições no círculo de amigos a que o poeta deu a conhecer seu novo trabalho. No registro de José Castello, Rubem Braga foi um deles: “Esse título é horrível, não significa nada. Se um cão não tem plumas, como pode ficar sem elas?” Ao que Cabral teria retrucado: “Pior vai ser o dia em que o rio vier a falar”. Isso acontecerá mais tarde, no poema “O Rio”, em que o Capibaribe sobrepõe sua voz às impressões do poeta” (2006, p. 100).
O poeta pressentia que a estranheza provocada pela singularidade dos símbolos utilizados logo seria substituída pelo enlevo, resultante da percepção do profundo conteúdo social de que estaria revestido cada um desses símbolos. O rio contemplado e descrito – pela primeira vez em seu labor poético – é o Capibaribe, rio que corta a cidade onde o poeta nasceu, o Recife, encravada na região nordestina, uma das mais pobres das regiões brasileiras. Era mais pobre quando o poeta exercitou essa contemplação e ainda pior quando considerado o tempo que a memória evoca para transformar em poesia:
“Eu escrevi com a lembrança da minha infância (durante a qual todas as casas em que morei ficavam em torno do Capibaribe). O que acontece é que o progresso do Recife, com os arranha-céus, com tudo isso, tirou muito da paisagem que eu tento descrever, tanto em O Cão sem plumas, como em O Rio, como em Morte e Vida Severina” (2008, p. 777).
Nada a estranhar então, quanto à metáfora escolhida para simbolizar a lembrança daquele rio, cujo passar pela cidade é comparado, logo no primeiro verso, com “uma rua/passada por um cachorro” (OCSP)*. A imagem fica ainda socialmente mais forte. O rio passa pela cidade como um cachorro pela rua. O cachorro de rua é o vira-latas, que a percorre na expressão inteira do seu abandono. Não tem as firulas dos cãozinhos de madame, com seus badulaques e correntes, seus pelos felpudos e macios. O cão a que se reporta a imagem cabralina do rio, em todo o poema, é o cão desamparado, despelado (significação de “sem plumas” sugerida por Alfredo Bosi – 2006, p. 503), que lambe mansamente as mãos do dono, ou arrasta pelas ruas seu “ventre triste” (faminto) ou ainda o “aquoso pano sujo/dos olhos de um cão”(OCSP) - o vira-latas tem os olhos sempre remelentos. Longe de plumas ou de se exibir como uma ave em seu conjunto de plumas, o cão através do qual Cabral “dá a ver” o Capibaribe no poema é incolor.
Por isso, o rio não sabia de cores vivas. “Não sabia da chuva azul/da fonte cor-de-rosa/da água do copo de água/da água de cântaro,/dos peixes de água,/dos peixes de água,/da brisa na água”(OCSP). Sabia, contudo, “dos caranguejos/de lodo e ferrugem./Sabia da lama/como de uma mucosa”(OCSP). O rio cantado por Cabral é o rio que carreia os detritos dos sobrados e mocambos recifenses, que conduz “algo da estagnação/das árvores obesas/pingando os mil açúcares/das salas de jantar pernambucanas/por onde se veio arrastando”(OCSP).
Nessas salas de jantar circulam “as grandes famílias espirituais” da cidade. “De costas para o rio”, elas “chocam os ovos grandes/de sua prosa... ...revolvem viciosamente/seus caldeirões/de preguiça viscosa”(OCSP), enquanto lá fora o rio “Em silêncio se dá:/em capas de terra negra,/em botinas ou luvas de terra negra/para o pé ou a mão/que mergulha”(OCSP).




*Todas as citações de O Cão sem Plumas estão seguidas da abreviatura OCSP entre parênteses e foram extraidas da edição, em volume único, de Poesia Completa e Prosa, Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 2008.


O rio descrito na primeira parte do poema demarca as profundas contradições sociais em que até hoje se debate a gente nordestina, formada pelos que vivem na suntuosidade dos palácios ou no conforto de prédios e arranha-céus e aqueles que afundam na lama ou formam o homem “ao menos capaz de roer/os ossos do ofício; capaz de sangrar/ na praça;capaz de gritar/se a moenda lhe mastiga o braço;/capaz/ de ter a vida mastigada/e não apenas/ dissolvida” (OCSP). O rio ai descrito é um rio que flui lentamente ou estanca intermitentemente nos acidentes da existência miserável que circunda suas margens. É um rio que nunca “saltou alegre em alguma parte”, nem nunca “foi canção ou fonte”. É um rio que “fluvializa” o homem (“naquela água macia/que amolece seus ossos/como amoleceu as pedras” - OCSP). Este homem se confunde com o rio e com ele passa a caminhar na segunda parte do poema.


O RIO E O HOMEM DESPLUMADOS


O homem que João Cabral insere em sua descrição da Paisagem do Capibaribe II é o homem identificado também como “cão sem plumas” pelo poeta, que acrescenta ai novas características da metáfora utilizada: “Um cão sem plumas/é quando uma árvore sem voz./É quando de um pássaro/suas raízes no ar./É quando a alguma coisa/roem tão fundo/até o que não tem” (OCSP). Como indica Benedito Nunes, cão sem plumas é “todo ser violentado, cujos atributos se truncam e se confundem... ...Sua forma de existir é não ser, pois que só existe como realidade negada em si mesma... ...O rio conhece os homens sem plumas, seus homônimos, que vão nele perder-se numa conivência de suas naturezas idênticas, ambas corroídas ou desfalcadas, ambas se confundindo na dissolução comum, que humaniza o rio e fluvializa o homem” (NUNES, Editora UnB, Brasília: 2007, p. 48). É imagem, portanto, que nada tem, como pensaram alguns, de surrealista, no sentido de traduzir uma escrita saida diretamente do inconsciente ou das regiões oníricas para onde nos conduzem os sonhos. É imagem crua, extraída do real, visualizado por um artista que se recusa a explorar ou descrever a própria emoção, porque tem consciência que “a obrigação do poeta é criar um objeto, um poema, que seja capaz de provocar emoção no leitor” (1998, p. 29). E não há de faltar emoção a qualquer leitor que se depare com a configuração do homem, arquitetada no poema cabralino, em interação simbiótica com a geografia e as condições de vida em que esse homem estaria fixado: “Na paisagem do rio/difícil é saber/onde começa o rio/onde a lama/começa do rio;/onde a terra/ começa da lama;/onde o homem/onde a pele/começa da lama/onde começa o homem/naquele homem” (OCSP).
O homem esculpido nessa construção literária nos remete a outras, tentadas por autores de envergadura similar à de Cabral. Como Josué de Castro, que nos diz em homens e caranguejos: “Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos” (Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 3ª edição, 2007, p. 10).
Ou ainda, se quisermos nos manter na seara exclusiva dos poetas e da poesia, ela nos reporta aos elementos contidos no antológico O Bicho, do seu conterrâneo Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos.//Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade.//O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato.//O bicho, meu Deus, era um homem” (L&PM Pocket, 2009, p.119).
Em análise sobre O Cão sem plumas, que transformou em livro depois de apresentá-la, em 1997, como dissertação de Mestrado, junto à UFRGS, Susana Vernieri diz que “ao mesmo tempo que é magma da vida, a lama também possui um outro lado mais aparentado com a morte” (Annablume, Rio de Janeiro: 1999, p. 93). Talvez por isso, aquele rio “jamais se abre aos peixes” (OCSP). Representante simbólico da vida, o animal não tem espaço pra reproduzir-se naquele rio estagnado. “Pode-se pensar então que o existente no curso daquela parte inicial do Capibaribe de O Cão sem Plumas seria a morte. E à vida restaria o espaço de afirmar-se pela sua inexistência” (1999, p. 95). Assim como a palavra, deduzimos, se afirma também pelo silêncio, que não significa mudez e é tomado aqui no sentido heideggeriano, como uma possibilidade constitutiva do discurso:
Silenciar não significa ficar mudo. Ao contrário, o mudo é a tendência 'para falar'. O mudo não apenas não provou que pode silenciar, como lhe falta até a possibilidade de prová-lo... Silenciar em sentido próprio só é possível num discurso autêntico” (HEIDEGGER apud VERNIERI, p. 112).
Depois de dissolvidos um no outro, o rio/cão/homem do poeta, homogeneizados pela falta de plumas, conectam-se com o silêncio, com a força do não dito ou como quer Clarice Lispector com o que “fica atrás do pensamento” (Rocco, 1998, p. 12) e nos remetem à terceira parte do poema, onde lutam com e confluem para o mar.
A LAMA COMO MAGMA DA VIDA


Na Fábula do Capibaribe, Cabral faz a passagem da lama aparentada com a morte para a lama como magma da vida. E recupera a imagem da espada (usada no início do poema), dando-lhe agora o vigor fecundante que penetra a cidade e “se derrama,/por aquela/úmida gengiva de espada” (OCSP). Fecundando-a, cortando-a bem ao meio, fazendo-a sangrar em vários afluentes, a espada transforma a cidade e a faz crescer. Como assinala o próprio poeta, “a terceira parte é uma espécie de fábula da formação do Recife pelo rio. O aumento da área da cidade por obra do rio está acontecendo na realidade. Para notar isso, basta comparar os mapas atuais com os mapas do Recife no tempo dos holandeses” (1998, p. 103).
A espada arma também o rio para o confronto com o mar. Este, primeiro “se fecha/a tudo o que no rio/são flores de terra/imagem de cão ou mendigo.//Depois/o mar invade o rio./Quer/ o mar/destruir no rio/suas flores de terra inchada” (OCSP). Mas antes desse confronto, antes de ser lavado e purificado de todos os detritos pelo mar (“que o mar está sempre/com seus dentes e seu sabão/roendo suas praias” - OCSP), “junta-se o rio/a outros rios./Juntos,/todos os rios/preparam sua luta/de água parada” (OCSP). É um movimento semelhante ao configurado pelo poeta, em poema posterior (Tecendo a Manhã), de Educação Pela Pedra: “Um galo sozinho não tece uma manhã:/ele precisará sempre de outros galos” (2008, p. 319).
Como o galo tecendo a manhã, o rio se encorpou com outros rios, formando mangues, visualizados pelo poeta como uma enorme fruta, ganhando assim agilidade e força, “a mesma máquina/paciente e útil/de uma fruta; a mesma força/invencível e anônima/de uma fruta” (OCSP), que se articula em sua espessura (“uma maçã/é muito mais espessa/se um homem a come/do que se um homem a vê” - OCSP) e se transforma em sintaxe. Porque, como Cabral assinalará depois no poema Rios sem Discurso, de Educação Pela Pedra, “o curso de um rio, seu discurso-rio/chega raramente a se reatar de vez;/um rio precisa de muito fio de água/para refazer o fio antigo que o fez./...para que todos os poços se enfrasem:/se reatando de um para outro poço/em frases curtas, então frase e frase/até a sentença-rio do discurso único” (2008, p. 325).


UM RIO DE POESIA
É então reatando ou recompondo todos os fios de água distribuídos no acidentado caminhar do cão sem plumas (rio), que João Cabral nos remete à quarta parte do poema, quando o rio se transforma em poesia. Segundo o poeta, “uma autocrítica da minha poesia anterior” (1998, p. 103). Embora recorra as mesmas imagens utilizadas antes, elas agora se revitalizam. O rio já não é o cão lamacento, pesado, “liso como o ventre/de uma cadela fecunda” (OCSP), mas salta ágil na memória “como um cão vivo/dentro de uma sala” (OCSP); o homem também vive e “porque vive/choca com o que vive” (OCSP), assim como a fruta se faz mais espessa, porque “(uma maçã)/é ainda mais espessa/se a fome a come./Como é ainda muito mais espessa/se não a pode comer/a fome que a vê” (OCSP). Impulsionados pela espessura da fome não saciada, ganhando a consistência de uma fruta cobiçada, o rio, o cão e o homem, antes violentados pelas agressões de uma natureza hostil e agora transformados numa torrente única, acenam para a luta, como fermento da vida: “Porque é muito mais espessa/a vida que se desdobra/ em mais vida... …porque é mais espessa/a vida que se luta/cada dia,/o dia que se adquire/cada dia/(como uma ave/que vai cada segundo/conquistando seu vôo” (OCSP).
Por esse último verso, podemos dizer que o cão sem plumas recupera a condição de ave, reclamada pelos tantos que estranharam o sem plumas como expressão associada a um cão, e nos remete ao Pavão Misterioso, 1976, composição de Ednardo, inspirada na literatura de cordel e trilha sonora da novela Saramandaia, da Rede Globo, cujos versos finais ironizam e desqualificam a força dos prepotentes:
“...eles são muitos
mas não podem voar”.
CONCLUSÃO


A unanimidade da crítica coloca O Cão sem Plumas como marco fundamental da obra cabralina. O poema é visto, ora como coroamento de toda a aprendizagem praticada pelo poeta em seus livros anteriores (com destaque para O Engenheiro e Psicologia da Composição), ora como base a partir da qual construiu todo o resto de sua obra (particularmente, O Rio e Morte e Vida Severina, que formam com O Cão sem Plumas o chamado “tríptico do rio”).
Foi a partir daí que Cabral esboçou com inteira segurança a fórmula essencial de que iria se revestir sua poética: não poetizar o poema. Fórmula que ele viria a consagrar, definitivamente, nos versos de Alguns Toureiros, em Paisagens com Figuras: “sim, eu vi Manoel Rodriguez,/ Manolete, o mais asceta/não só cultivar sua flor/mas demonstrar aos poetas://como domar a explosão/com mão serena e contida/sem deixar que se derrame/a flor que traz escondida//
e como, então, trabalhá-la/com mão certa, pouca e extrema:/sem perfumar sua flor/sem poetizar seu poema”. (2008, p. 134). Essa fórmula (cujos vestigios iniciais se acham presentes mesmo em Pedra do Sono, seu primeiro livro) se irá transformando gradativamente em obsessão, até se consolidar em O Cão sem Plumas, como bússola através da qual o poeta se orientará, na meticulosa elaboração dos inúmeros textos, poemas e livros ainda por vir.
José Castello diz que é “dessa perspectiva, de uma poesia livre do poético (entendido como aquelas normas traçadas por parnasianos e simbolistas e que se confundem até hoje com poesia), é desse lugar vazado, sem os atributos da inspiração e do lirismo (“eu me situo na linha dos poetas marginais, porque sou profundamente antilírico” – 1998, p. 55) esse lugar seco e portanto capaz de tudo, que Cabral critica seus pares, sejam outros poetas, sejam toureiros (2006, p. 158/159). Também Benedito Nunes pondera: “Miniatura da arte poética de João Cabral, na qual já se acham traçadas ou esboçadas as linhas mestras que se fixarão nas obras seguintes, O Cão sem Plumas dispõe de impressionante bateria de recursos retóricos. E é nele que se dá a bifurcação dessa arte em dois tipos de dicção (NUNES, 2007, p. 50). Ou em duas águas, como ficou mais conhecida a divisão da obra poética de Cabral. Finalmente, João Alexandre Barbosa arremata o raciocínio dos aqui ligeiramente pinçados: “Em O Cão sem plumas, a negação, a recusa e o silêncio articulam-se para uma afirmação dialética da poesia, enquanto instrumento de uma busca de significação a ser encontrada, aprofundando os termos daquilo que já estava presente, como se viu, em alguns poemas do seu primeiro livro... … a recusa da poesia poderá ser o encontro de uma poética (Ateliê Editorial, 2006, p. 156/157, grifo nosso).
Não bastassem tantas e tão significativas referências a respeito, temos o próprio poeta extraindo do seu labor a conclusão lapidar:
Eu digo que aprendi com Manolete a não poetizar o poema. Porque esse é o problema de muito poeta: é que ele faz um poema poético. Quer dizer, faz um poema a partir de elementos já convencionalmente poéticos. Ele perfuma a flor. É como você plantar uma rosa e depois achar que a rosa não está cheirando o suficiente e ai pôr, em cima da rosa, perfume de rosas para ela cheirar mais. Ele perfuma o poema” (1998, p. 70).
É assim, lidando com essa espécie de contradição em termos (a de ser poeta, abominando a designação; a de fazer poesia, despoetizando-a) que João Cabral chega a súplica, quase patética, contida em seu Último Poema:


Não sei quem me manda a poesia
nem se Quem disso a chamaria.
Mas quem quer que seja, quem for
esse Quem (eu mesmo, meu suor?),
seja mulher, paisagem ou o não
de que há que prender os vãos,
fazer, por exemplo, a muleta
que faz andar minha alma esquerda,
ao Quem que se dá à inglória pena
peço: que meu último poema
mande-o ainda em poema perverso,
de antilira, feito em antiverso”
(Em Agrestes, Nova Fronteira, 2008, p. 528)
Referências Bibliográficas


ATHAIDE, Félix de. (org) – Ideias Fixas de João Cabral de Melo Neto – Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1998
BANDEIRA, Manuel – Bandeira de Bolso – Uma Antologia Poética – L&PM Pocket: Porto Alegre, 2009
BARBOSA, João Alexandre – Alguma Crítica – Ateliê Editorial: São Paulo, 2002
BOSI, Alfredo – História Concisa da Literatura – 47ª edição - Cultrix: São Paulo, 2006
CASTELLO, José – João Cabral de Melo Neto: o Homem sem Alma – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006
CASTRO, Josué de. - Homens e Caranguejos – Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2007
LISPECTOR, Clarice – Água Viva – Rocco: Rio de Janeiro, 1998
MELO NETO, João Cabral de. - Poesia Completa e Prosa – Org: Antonio Carlos Secchin –
2ª edição – Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 2008
NUNES, Benedito – João Cabral: a máquina do poema – Org: Adalberto Muller – Brasília: UnB, 2007
VERNIERI, Susana – O Capibaribe de João Cabral em O Cão sem Plumas e o Rio: Duas Águas? -
Annablume: São Paulo, 1999.