terça-feira, 14 de agosto de 2012

UTOPIA ABATIDA


Mas me interessa a catarse
o caudal de humanidade
contido em cada passo
em cada ser vivente
ainda que distante
o horizonte divisado
ainda que inexista
o vivencial configurado
ainda que esconda
a face da discórdia
e se alimente da inveja
ou do ódio represado.

Ainda assim me envolve
e me deixa a circular
em todos os quadrantes
buscando atento o fio condutor
na infinidade de fios desencontrados
deixados em viagens
que não vão terminar
porque sequer começaram.

Eu me envolvo e me cruzo
com o gajo português
cuja rispidez disfarça
o peito lusitano
a explodir de poesia e lirismo
ou com o hermano espanhol
cuja descontração anuncia
a alegria do combate
que hoje explode nas ruas
em desafios musicais
como antes resplandecia
em pugnas civis.
Ah, eu enfrento o circunspecto francês
cuja desatenção se confunde com arrogância
mas é na verdade orgulho
pela pátria mãe da cultura
e de todas as liberdades.

Sim, eu me envolvo e me emociono
e me perco no manancial de lágrimas
que regam a semente internacionalista
de uma utopia abatida
pela face perversa
do mundo globalizado
de onde se retirou o sonho
e se aniquilou o homem.




(Em 2007, a caminho de Madrid, ainda no aeroporto de Porto, a 23 de Abril, Dia Mundial do Livro)

terça-feira, 17 de julho de 2012

SURTO DE HAICAIS


Conviver no amor
é trilhar caminhos da dor
estoicamente.



                                                Sonhos imponderáveis
                                                são enigmáticos sinais
                                                de loucos pesadelos.



Amor fermentado
em ódio: nutriente fetal
da intolerância.




                                                  Quando me desejam
                                                  muitas graças, eu bem pressinto
                                                  infelizes desgraças.



Fazer poesia
é fomentar uma forma
de alucinação..

domingo, 15 de julho de 2012

A ESPERANÇA É VERDE


                                                                      

                                                                 

CHICO DE ASSIS 

A esperança voga
e vive no fenecer
do tempo.

Tremula generosa
no olhar entrecruzado
em despedida
amor
tecendo o gesto
em direção à pílula fatal
mal digerida.

A esperança é feto.
Psicografa a melodia
determinação da luz
fulgurante
que nos imobiliza
e nos conduz.
Campos e relvas
virgens relembram
um tempo que se foi
para sempre
e parece não ter (s)ido
nunca.

Ah, o tempo de outrora
o tempo de contar
e cantar
a aventura inédita
a festa nos olhos
infantis
abertura pueril da
porta-fresta
onde penetra a morte.

Ah, o tempo do presente
assobiando o som
que nos perpassa o tímpano
e nos produz a dor
ancestral do amor
perdido
reencontrado
em chuva de dobrados
a orientar as mãos
os lábios velados
pelo riso
do renascimento.

Ah, o tempo do futuro
orquestração de címbalos
azuis
concertos musicais
de flautas
reencontro da cruz
em corrente magnética
com a poesia
que se esvai
no verso moribundo.
É preciso sim resistir:
por sobre os campos
os mares
as ruas
as calçadas
procurar a nota mágica
vinda de outras flautas
outros tempos
redescobrindo o nada
vazio mortal do salto
para a liberdade
azul
ninho da esperança
verde.

Agora as línguas
felinas
percorrem grutas
femininas
cavernas ambíguas
do ódio
laboratórios musicais
da solidão
que se eterniza.


sexta-feira, 13 de julho de 2012

INSUPORTÁVEL


Não suporto tédio. 
Não suporto mesmice.
Não suporto acomodações burocráticas. 

Talvez por isso
às vezes pense:
não me suporto!

O AMOR E O OUTRO




                                                                                                    Affonso Romano


           Não amo
                       melhor
            nem pior
            do que ninguém.

            Do meu jeito amo.
            Ora esquisito, ora fogoso,
            às vezes aflito
            ou ensandecido de gozo.
            Já amei
                       até com nojo.

            Coisas fabulosas
            acontecem-me no leito. Nem sempre
            de mim dependem, confesso.
            O corpo do outro
            é que é sempre surpreendente.





















terça-feira, 5 de junho de 2012

EM BUSCA DA JUSTIÇA



ALDIR BLANC


       Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória esta se movendo como   estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel. Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”; para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas; para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento  de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora; para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”; para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides; para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados; para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir  um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”; para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”; para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar; para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal; para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos  ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na  Lapa; para que torturadores não recebam como  “prêmio” cargos em embaixada no exterior; para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno; para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis; para  que  inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de  tolerância do Planalto vejam que suas mãos  continuam cheias de sangue e excremento; para que nunca mais na vida de um jovem idealista -o queixo firme , olhos faiscantes de revolta, com a expressão  da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira - seja  ceifada por  encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.


                                                                                            ALDIR BLANC


sexta-feira, 20 de abril de 2012

UM JOGO SEM FIM

                                                                                         CHICO DE ASSIS




Jogar com palavras:
confrontações
                       terminações
                                          ondulações.

O poema brinca saltita
o poeta sofre.

Tudo contido um signo:
que fosse amor e ódio
caos e ordem.  

quarta-feira, 18 de abril de 2012

DA MALDIÇÃO

                                                                  CHICO DE ASSIS






Vem da infância essa falta
de carinho e de consolo
sem guarida do amor
que alucina e é morte
antes da vida.
Assim como é deserto
o corpo
em que se delineia
o manto circunspeto
de um destino.

Vem de bem longe
quem sabe
de regiões tão nebulosas
o grito mais aflito de socorro
a ecoar sobre montanhas
pedregosas
crateras de afeto
que se instalam em círculos
de raízes infecundas
ou sequer se instalam.

Vem dos campos
da solidão intramuros
fagulhas de incestos
e pensamentos interditos
amálgamas de uma fé
já renegada
mas sempre intermitente
nas frestas de um verso.

Se há revolta nos gumes
dessa pedra
são embriões da glória
fátuos clarões
que a presunção entroniza
na falta do saber
que imortaliza.

Se há sonhos se há mitos
a insinuar esperanças
são aluviões a permear
a argila dos proscritos
perdidos nas intempéries do tempo
lodaçal de vaidades embutidas
nas fímbrias do poder
que tiraniza.

sábado, 14 de abril de 2012

SONETO DA UNIÃO








                                                                    “Tijolo por tijolo/num desenho mágico”

                                                                     cá estão quatro anos de relação.


                                                              SONETO DA UNIÃO


                                    (Contraponto intertextual com o “Soneto da Separação”, de Vinicius de Moraes)



Não nem foi tão de repente assim.
Talvez em meu arrevessado canto
não foi do riso que se fez o pranto
e sim do pranto que se fez o riso.

“Um riso franco de varandas”
conforme a lavra de outro mor poeta
fez-se caminho e canteiro de flores
bálsamo de amor desaterrando dores.

Sim não foi tão de repente assim.
Foi muito mais o salto intermitente
nas reentrâncias do passado tempo

que condensado se tornou presente:
abriu veredas para os céus futuros
e entre clarões alicerçou o sempre.

                                                                         (Chico de Assis, em 10 de abril de 2012)

sábado, 7 de abril de 2012

CRÔNICA DE UMA SAUDADE CRÔNICA

                                                                                                  CHICO DE ASSIS







Você é um filho ruim, um filho ruim” – disse-me o velho em seu delírio, enquanto eu tentava conter seu corpo magro em minhas mãos, para impedir-lhe de levantar em meio a noite, uma rara noite em que não suportei ficar acordado e o encontrei quase de pé, descendo do leito do hospital público onde estava internado, recuperando-se de uma parada cardíaca. Era a segunda noite que passava a seu lado naquele hospital (antes se encontrava em hospital particular, com assistência completa, mas valendo os olhos da cara e o médico amigo que o havia atendido na situação de emergência dissera-me convicto, vocês vão ficar só de cuecas, para cobrir as despesas e provavelmente não vão conseguir, se ele ficar por aqui para o período de recuperação, que imagino no mínimo de vinte dias). Sugeriu então que o transferíssemos para um da rede pública, onde ele cuidaria de garantir-lhe o essencial e o essencial incluía acompanhamento para as noites. Por ser o único da família em condições de fazê-lo, já que as irmãs, casadas, com filho ou marido para cuidar, não dispunham de tempo naquele horário, eu ali estava, depois de um cochilo que não consegui evitar, acalmando o velho aos poucos, calma papai, calma papai, é para o seu bem, até vê-lo acalmar-se de fato e quase sem forças balbuciar ainda, um filho ruim, antes que a enfermeira chegasse e o pusesse de volta a cama, para uma lavagem, é o que está incomodando-o, o intestino funciona lentamente e ele se enche de gases, é normal, vamos cuidar disso.

Eu voltei ao beliche onde antes me encontrava, emocionado com o incidente, recriminando-me por não haver conseguido evitar a sonolência, e pensando no que faz essa aproximação, ditada inicialmente pelo sangue e depois pelo convívio, seja qual seja, sendo o meu com o velho marcado por altos e baixos, eu deveria dizer baixos e altos, porque haveria de assinalar duas etapas bem distintas, a primeira compreendida no período de infância e adolescência, quando ele era apenas uma sombra severa, que não se mexia em manifestações de carinho e apenas acompanhava o que julgava essencial acompanhar, como vão os estudos dele? passou de ano? por que vive sempre na rua?

A segunda fase, na idade adulta, quando foi uma rocha de paciência e solidariedade, acompanhando-me em todos os percalços da longa prisão política a que fui submetido e esse acompanhamento implicava participação em rituais que o enchiam de vergonha, como a submissão às revistas impostas para que pudesse entrar como visita. Ele aceitava resignado o que lhe parecia uma humilhação, ele um homem de bem, fiel cumpridor dos seus deveres, sendo apalpado pelos esbirros policiais, que com o tempo foram até compreendendo a inutilidade da tarefa, aquele velhinho tão cordial não merecia tratamento tão extemporâneo e o foram deixando incólume, o senhor fica ai no quarto alguns minutos, depois sai, não vamos mais revistá-lo. Suportaria tudo, contanto pudesse usufruir das horas permitidas ao lado do filho, embora não conseguissem os dois expressar em palavras o que estivessem sentindo e se limitassem a lacônicos comentários, e a vida como vai?, ele perguntava, bem, bem, eu respondia, estamos começando a arrumá-la, mas aqui há tempo pra tudo.   

ÚLTIMO DESEJO

                                                                                             CHICO DE ASSIS





Se há de haver alguma
seja alvirrubra a bandeira
que me cubra e me conduza
à última morada.

Não quero pompas
nem choro nem vela.
Apenas a cor rubra da guerra
que pelejei sem ganhar
e o alvo manto da paz
que enfim ganhei!

segunda-feira, 2 de abril de 2012

EXERCÍCIO DO DIÁLOGO



(Sobre Marina e Benício,
personagens do meu novo romance Água de Mortas)

Por Isadora Salazar Soares
(Isadora Avertano-Rocha)
Em Aula de Dramaturgia Prof. Jô Bilac.
30/III/12

Elevador de um grande prédio comercial urbano. Próximo da hora do almoço. O elevador desce e pára em praticamente todos os andares. Em cada andar onde o elevador pára entram e saem de seu interior secretárias de sandália rasteira, executivos com mochilas de computador, médicas que procuram a chave do carro na bolsa, crianças mimadas que insistem em sentar no assoalho enquanto um constrangido avô deixa cair exames de ressonância magnética no chão, advogados que não interrompem conversas ao celular e um dentista vestido de branco, ainda com a marca de seus óculos protetores sobre o rosto e cheiro de bactericida de consultório. Uma mulher de lenço na cabeça soluça e tenta disfarçar suas lágrimas escondida em seus óculos escuros. A maioria diz bom dia ou boa tarde ao entrar no elevador – alguns respondem de forma mais ou menos cordial e comentam sobre ainda ser bom dia já que não almoçaram, outros simplesmente seguem no cuidar de suas próprias vidas e nada respondem. O diálogo entre os personagens se inicia no térreo. Há apenas três indicações de ação em todo o texto. Não há indicação de sexo ou caracterização desses interlocutores.

PERSONAGEM 1- (AO FUNDO DO ELEVADOR, SEGURA FIRME O BRAÇO DE SEU INTERLOCUTOR): Não vá!
PERSONAGEM 2- (SURPRESO): Por quê? (Tenta reconhecer a pessoa que o interceptou.Procura algo nos bolsos: os óculos, talvez).
PERSONAGEM 1- Precisamos seguir em frente.
PERSONAGEM 2- Como? Desculpe, mas acredito que você tenha me confundido com alguém.
PERSONAGEM 1- Não, veja, precisamos seguir em frente. Olha, você vai sair daqui agora, dobrar uma esquina e depois a outra e quando finalmente achar que dobrou o quarteirão inteiro nós vamos nos encontrar novamente. Então, por que não seguir em frente a partir daqui?
PERSONAGEM 2- Olhe, veja você: acredito mesmo que eu tenha sido confundido com alguém da sua vida, mas essa realmente não é a hora. Há pessoas que me esperam lá fora.
PERSONAGEM 1 – Pessoas? Quem? Quem pode ser tão importante nesse mundo a ponto de não seguires em frente comigo? Quem? O sol que esturrica a pele do dia e condena essa cidade imunda a mais cruel voragem da vida? Ah, não, my darling, quem? Quem pode ser tão importante? Você? Marina ? Marina está morta, entenda isso!
PERSONAGEM 2- Morta...
PERSONAGEM 1 - E Benício, o teu grande amor, também se foi com ela. Mortos! Quem, então? Me diga? Te desafio! Mortos.
PERSONAGEM 2- Olha só, vamos fazer um negócio: você me deixa sair daqui e eu tomo um café contigo. Pronto, um café e você verá que tudo se dissipa, toda essa maldita história de Benício e Marina, tudo se esclarece. Um café apenas...
PERSONAGEM 1- Café? Mas eu nem sonho em tomar um café contigo. E alimentar comida que já é comida? Olha, dear, isso aqui é um monstro que devora homens, mulheres e criancinhas e já vamos a tempos na barriga dele.
PERSONAGEM 2- Criancinhas...
PERSONAGEM 1-Sim, as mesmas catarrentas que nos perseguem e que sempre nos perseguiram.
PERSONAGEM 2- Olha, deixa eu te explicar o que você já não está mais em condições de entender: olha para a frente. Você vê ? Isso aqui é apenas um ponto de passagem. Nem ao menos é o começo ou o final. A chegada e a partida não estão aqui. Você vê ? A chegada e a partida estão ali, na entrada do prédio. E esse Benício e essa Marina de quem você tanto fala eu nem sei se existem. Eles jamais existiram. Agora me deixa sair que o que eu sei mesmo é que há alguém lá fora que me espera além de mim!
PERSONAGEM 1- Mas está tão quente lá fora... Olha que tu podes pegar uma insolação.
PERSONAGEM 2 – Que nem aquela vez na praia... Lembra? Ficamos vermelhos até a pele despregar do rosto. E era um dia lindo. Mas não, vamos, é só dar um passo e estaremos longe daqui.
PERSONAGEM 1- Mas na próxima esquina há o encontro. E aí vamos virar uma e outra vez até a próxima esquina. Virar todo um novo quarteirão, esbarrar em uma ou outra pessoa até que estaremos de volta aqui.
PERSONAGEM 2 – Sim, apenas a um passo da propriedade do tempo. Tempo. Do tempo... Mas venha, vamos, venha, eu te ajudo. É só um passo...
PERSONAGEM 1- Ajuda? Saio contigo então.
PERSONAGEM 2- Sim. Mas, espera, o que é isso? O que diabos é isso ?
PERSONAGEM 1- Descemos ao fosso. Passamos pelo subsolo muito rápido e agora são apenas os freios próximos ao fosso que nos sustentam.
PERSONAGEM 2 – Freios? Não entendo? E por acaso tu conheces de mecânica de elevadores agora?
PERSONAGEM 1- Não. Apenas sei como são os intestinos dessa engrenagem. Sabes, não é? Eu já estive aqui. Nessa coisa. Nessa coisa que nos devora vivos e nos engole como língua de fogo no interior de aeronave em acidente aéreo. Aqui. Essa coisa.
(PEQUENA PAUSA)
PERSONGEM 2 - Shiiiiii. Ouve!
PERSONAGEM 1 – O que ?
PERSONGEM 2 - Peraí, ouve: há chuva lá fora. Sentes o cheiro?
PERSONAGEM 1 – Chuva ?
PERSONGEM 2- Sim. Chuva. Ouves as sombrinhas sendo abertas aí em cima?
PERSONAGEM 1- Não ouço nada. Não ouço nada a não ser a ti. Nunca pude ouvir alguém por mais tempo em todo esse tempo.
PERSONAGEM 2- Não. Ouve agora! Agora que as luzes se apagaram. Toca. Toca essas paredes. Sentistes? É água. É água que escorre por essas paredes e já encharca os meus pés. Toca? Vamos, sente!
PERSONAGEM 1- Não, é sangue. Sinto o cheiro de sangue.
PERSONAGEM 2- Não, isso é cheiro de terra molhada. Terra molhada lá de fora, da cascata e do jardim que ficam bem na entrada do prédio.
PERSONAGEM 1- Não. É sangue. Reconheço o cheiro de sangue. Não ouves as crianças mortas lá fora protegidas sob as sombrinhas que se abrem?
PERSONAGEM 2- Não, é água e ela já bate em nossa cintura. Vamos! Pega essa bengala, empurra o alçapão que está acima de ti e já já estaremos fora desse poço.
PERSONAGEM 1- Não. Não vejo essa saída. Está escuro aqui e agora eu esbarro em mãos, pernas e blazeres de pessoas que não sei quem são. Elas viram uma esquina e outra esquina, nos esbarram e sangram e eu nem sei quem elas são.
PERSONAGEM 2- E elas já respiram?
PERSONAGEM 1- Não. Não sei. Acho que não.
PERSONAGEM 2 – Olha, não faz isso comigo. Eu não quero mais esbarrar em ninguém e a água já me cobre a boca.
PERSONAGEM 1- Não, não faça isso você comigo agora. Olha, é só tu te moveres. Empurra com força o teu braço para cima que a tampa do alçapão se desloca e se abre para nós.
PERSONAGEM 2- Não. Não posso. Vá você, se quiser porque eu não quero mais esbarrar em ninguém e afinal precisamos seguir em frente, e dobrar uma esquina, depois outra e sangrar e depois dobrar a outra. Olha, vem. Eu te ajudo a sair daqui que a chuva ta engrossando.
PERSONAGEM 1- E abandonar aqui todos os cadáveres que nos cercam?
PERSONAGEM 2- Eles sempre estiveram ao nosso lado, meu amor.

FIM


sábado, 31 de março de 2012

A NOITE DE 21 ANOS!

                                                                                    CHICO DE ASSIS










                     0 1o DE ABRIL DE 1964: a imagem que mais me ocorre ao lembrar esse dia é a minha saída do prédio da Agência Nacional (o mesmo dos Correios na Av. Guararapes), onde trabalhava como repórter-auxiliar, acompanhado de meu irmão mais velho (também metido em subversão à época) e de velhos comunistas que trabalhavam na Agência. As ruas já respiravam o clima de golpe, o Palácio das Princesas estava cercado por tropas do Exército, o governador Miguel Arraes assumia a digna posição que o projetaria para a História, recusando-se a renunciar ou a aderir aos golpistas, e eu saía do trabalho meio assustado com tudo, disposto a sondar o ambiente. Não podia supor que toda aquela estrutura – que havia levado o velho Prestes, sete dias antes, a dizer que as conquistas sociais eram irreversíveis e que nada deteria o avanço do povo – estivesse desmoronando implacavelmente aos nossos pés.

                  Mal cheguei na ponte principal que corta a cidade, quando me deparei com a passeata de estudantes, bancários e alguns poucos trabalhadores de outras categorias, que se dirigiam ao Palácio, em solidariedade ao governador sitiado. Naturalmente, me incorporei a ela. Quando chegamos a esquina da Guararapes com Dantas Barreto, a um quarteirão do Palácio, as tropas do Exército se movimentaram em nossa direção. Pusemo-nos a cantar o Hino Nacional e a desenrolar as bandeiras nacionais que conduzíamos, na esperança de que o gesto paralisasse as tropas, como ocorrera em outras escaramuças anteriores.

                   Acontece que o clima era de dissolução da ordem constitucional e quem começara a rasgar a Constituição em outros pontos do país, não iria deixar de continuar rasgando-a, por conta de trezentos gatos pingados recifenses, cantando com todo orgulho o hino da pátria. Várias rajadas de metralhadora foram a resposta que tivemos aos nossos gritos de fascistas e de não passarão – pra não perder a oportunidade de copiar palavras de ordem vindas de outras realidades, vício incorrigível das esquerdas em todos os tempos. Em meio a uma poça de sangue, esparramou-se o corpo de Jonas Albuquerque, menino poeta de 16 anos, meu colega no Colégio Estadual de Pernambuco, que teve o queixo arrancado pela rajada. Um pouco mais adiante, o corpo de Ivan Aguiar, estudante de Engenharia, enrolado numa ensanguentada bandeira nacional. Só fui parar de correr em casa (minha família morava à época em bairro central), para arrumar uma pequena mochila, ouvir o choro de minha mãe e as eternas admoestações do meu pai, “quem não obedece ao pai, termina obedecendo à polícia”.
               
                          Meu pai era o velho protótipo do funcionário público, com concepções diametralmente opostas às minhas e vida completamente diferente em tudo da que eu desejava ter. Tive com ele uma relação que pode ser considerada boa, para os padrões da época e da camada social a que pertencíamos – a nossa tradicional, mesquinha e angustiada classe média, quando mais chegada pra baixa do que pra alta. Mas as lacunas nessa relação eram evidentes e alguma coisa mal resolvida acompanhou todo o seu transcurso, tanto que o romance que escrevi, narrando as peripécias da nossa geração (“A Trilha do Labirinto”), começa e termina com um diálogo entre pai e filho (observação feita casualmente por uma amiga, que me flagrou envolvido nas artimanhas do meu inconsciente).

               Deixei os dois em pânico e saí meio sem rumo, na expectativa de encontrar alguma orientação, um pouquinho mais ajuizada que a recebida por um vulto agalegado, que conhecia das assembléias estudantis, logo depois que saí de casa: “agora é pegar em armas, companheiro; faca, revólver, facão e se juntar no campo ao velho Griga!”. O velho Griga era o velho Gregório Bezerra, que naquele exato momento era arrastado pelas ruas de Casa Forte, uma corda amarrada ao pescoço, para gáudio dos torturadores recém-vitoriosos e escândalo das tradicionais famílias do bairro, que começavam a descobrir o tipo de sistema que elas mesmas haviam engendrado, nas famosas passeatas com Deus, pela Família e pela Liberdade, do pré-64. Eu me limitei a rir diante do companheiro (espécie de reação nervosa que me ocorre quando não sei bem o que fazer) e segui meu caminho ou descaminho. A noite se abateu literalmente, não só sobre o Recife. E duraria 21 anos!


terça-feira, 27 de março de 2012

COLHEITA DA DOR


                                       CHICO DE ASSIS






Os justos choram por nós.
Não são lágrimas covardes.
São mais fagulhas que ardem
em nossos olhos
entre roçados da morte
que plantam a revolta na vida
e colhem da dor
JUSTIÇA!

sexta-feira, 23 de março de 2012

OS PENDURICALHOS DA MENTIRA

                                           CHICO DE ASSIS



Eu respeito muito Carlos Heitor Cony. Respeito-o como escritor (de romances extraordinários, como Pessach - A Travessia - do periodo antes do golpe de 64, até "o Piano e a Orquestra" e outros, do período mais recente, quando ele voltou a escrever ficção, depois de 25 anos sem o fazer). Respeito-o como jornalista (dos textos contundentes e corajosos, que lhe valeram algumas prisões na época da ditadura, e devem ter lhe valido vários aborrecimentos em todas as épocas). Respeito-o, enfim, como ser humano e como cidadão - sempre antenado com as lutas sociais, fazendo incidir sobre elas um olhar essencialmente humanista.

Foi por respeitá-lo assim, em tantos planos das atividades que ainda desenvolve, que me espantei ao vê-lo cometer um erro histórico imperdoável, no artigo intitulado "Nuremberg e a verdade", publicado à pag. E10, da Ilustrada, na Folha de São Paulo de hoje. Referindo-se à Anistia, promulgada em 1979, ainda no governo ditatorial de João Batista Figueiredo (aquele que dizia preferir o "cheiro de cavalos" ao "cheiro de povo"), diz o veterano articulista:

"Foi aceito por ambos os lados o conceito da anistia plena, geral e irrestrita para todos os crimes políticos de determinado período, cometidos em nome da ordem reinante ou em nome da justiça social e econômica, violentada pela mesma ordem então reinante".

De todos os argumentos que ora estão sendo usados para inocentar torturadores - que torturaram, estupraram, assassinaram e fizeram desaparecer centenas de brasileiros, continuando até hoje absolutamente impunes por todos esses crimes -, este é o mais falacioso, por conduzir uma estupenda mentira histórica. A anistia sancionada por Figueiredo foi parcial, mesquinha e restrita. Não houve pacto. Houve imposição. De uma pequena maioria, num Congresso ainda emasculado pela legislação discricionária, associada à truculência habitual dos trogloditas do regime. Aos que estavam do lado dos perseguidos restou apenas se curvar à correlação de forças e aproveitar os elementos de avanço que a medida de qualquer forma representava (porque ninguém seria louco para se recusar a sair da prisão ou a voltar do exílio). 

De fato, nós saímos e voltamos. Mas centenas dos nossos companheiros só foram efetivamente anistiados em 1985, em Emenda Constitucional encaminhada pelo então ministro da Justiça, Fernando Lyra, já no governo de José Sarney. Aqui em Pernambuco, ficamos presos depois da anistia de 28 de agosto de 1979: eu, Chico Assis Rocha, Alberto Vinicius Melo do Nascimento, Samuel Firmino de Oliveira, José Calixtrato Cardoso, Luciano de Almeida e Rholine Sonde (os dois últimos, libertados apenas em fevereiro de 1980). Todos saímos, não por força da anistia, mas graças ao instituto jurídico da Liberdade Condicional - que nos manteve monitorados pelo regime, ainda durante vários anos. 

Em vista disso, solicito, aos que possam e queiram, que divulguem ao máximo tais informações. Até porque, embora tardiamente, nosso pais se aproxima da hora da verdade. E é crucial, para que ela resplandeça plenamente, que os penduricalhos da mentira - mesmo quando expostos sem má fé, como me parece ter sido o caso de Cony - sejam pronta e energicamente refutados.

quarta-feira, 21 de março de 2012

SIMPLESMENTE BELA!

                                                                                                        CHICO DE ASSIS


                                                                                      

No princípio Bela
foi um marco de resistência
bandeira desdobrada
ao vento amazônico.

Depois foi um sonho
sobrevoando a cordilheira
e aterrissando em terra firme
para vencer a todos os pesadelos.

Agora é mulher.
Do alto dos seus 40 anos
contempla a paisagem dominada
dentro da qual se faz
cada vez mais
BELA!

terça-feira, 20 de março de 2012

À FLOR DA RAÇA


                                 Chico de Assis








Essa negra angolana
Moçambicana quem sabe?
é só uma negra
cujo ar de espanto não percebe
que as coisas acontecem
lentamente na esquina do Rossio
dessa Lisboa multietnica
enquanto esse vinho me desce.

As coisas acontecem e florescem
nas entranhas das praças
como aquele casal que de mãos
teatralmente entrelaçadas
leva-as aos lábios
ou fazem-nas recolher
uma lágrima atordoada:

Tu estás assim por conta de ontem?”
- ele diz apoplético
sem ligar à raiva que o sacode
e a mantém trêmula
para enfim se entregar num abraço.

Essa negra também não sabe
que de tão longe venho
para descobrir com ela
e outros dos seus irmãos encontrados
em sussurros e conciliábulos
os segredos entrecruzados da raça
que também são os meus
e os trago recônditos
ah, eu os trago tão vivos
e tão latejantes à flor da pele
que talvez nunca os possa contar.

Essa negra enfim não sabe
o quanto me deu
nesse breve contato
e talvez um dia
os dois venhamos a descobrir
por que fora eu
o único receptáculo
do seu ar atarantado
como o meu.

(em 04 de Abril de 2007, na Praça D. João I, em Lisboa, saboreando o vinho tinto “Porca de Murça”)